Segundo o New York Times, Donald Trump está abraçando propostas de esquerda, como controlar o preço dos remédios e aumentar impostos de ricos. É uma provocação, claro. Mas é impossível não ver as grandes mudanças que o presidente está promovendo na política externa, desde desviar o alinhamento automático, pelo menos publicamente, com Israel até não apenas aceitar um encontro com o novo líder da Síria, Ahmed Al-Sharaa, como elogiá-lo.
Ex-simpatizante da Al Qaeda, ainda conhecido no mundo árabe pelo nome de guerra Abu Mohammad Al-Julani, o sírio foi para o Iraque combater as forças americanas que haviam derrubado Saddam Hussein. Passou três anos preso num campo mantido pelos americanos e saiu direto para criar um grupo jihadista na Síria. Normalmente, estaria numa lista de candidatos a um drone explosivo, não abrindo um sorriso de orelha a orelha ao se encontrar com Trump, sob os auspícios da Arábia Saudita.
Trump não apenas suspendeu as sanções contra a Síria como elogiou o presidente, que chegou ao poder pelas armas, há apenas cinco meses, e está tentando modificar a imagem, com ajuda da Turquia e da Arábia Saudita. “Jovem, bem apessoado. Um cara durão. Passado forte. Passado muito forte. Lutador”, disse o presidente.
Poderia estar falando de um praticante de MMA, mas se referia a alguém que nem em um millhão de anos dividiria espaço com qualquer presidente americano anterior a Trump.
GUERRA SANTA
Como Trump é Trump, aproveitou também para espetar os republicanos da escola de George Bush filho, justamente os invasores do Iraque e defensores da posição conhecida como “construtores de nações” – uma referência à pretensão utópica de criar um novo Oriente Médio, cheio de países democráticos iguais aos do mundo ocidental.
O presidente incluiu na lista dos esforços frustrados os neoconservadores e as ONGs liberais. Parecia, e aí entra uma versão da análise do New York Times, um esquerdista das antigas. Não foram eles, criticou, que criaram “as maravilhas reluzentes de Riad e Abu Dhabi, mas os próprios países envolvidos. A turma dos neocons “gastou trilhões e não conseguiu desenvolver Cabul e Bagdá”. E, no final das contas, “destruíram mais nações do que construíram”.
Trump está “pronto para uma nova ordem mundial”, analisou o Jerusalem Post – o jornal israelense está fazendo uma cobertura forte sobre as mudanças desfechadas por Trump, inclusive por causa do grande significado que têm para Israel.
Entre outras mudanças, o presidente americano não vai mais “fazer sermão” – ou seja, promover a adesão a valores democráticos. Os elogios rasgados ao príncipe regente Mohammed Bin Salman – “Nenhum parceiro é tão forte” – mais do que comprovam isso.
O sírio Sharaa está fazendo um bom trabalho de relações públicas, certamente com assessoria da Turquia. As tentativas de deixar o passado jihadista para trás são espertas, mas a realidade é diferente: na luta contra o regime de Assad, sustentado pelo Irã, muitos combatentes sírios se identificaram com a causa islamista tal como representada pela Al Qaeda, numa espécie de guerra santa contra os infiéis da minoria xiita e correlatos.
SEM PALAVRAS
Na vida real, o novo regime está promovendo ou acobertando ataques contra a minoria alauíta e também cristãs, por terem se alinhado com o regime deposto. Se Trump conseguir o compromisso de que isso pare de acontecer, será um grande feito. Ele também propôs a expulsão de terroristas, uma questão mais complicada. A essa altura, como definir terrorista? O próprio Sharaa estava na lista há bem pouco tempo.
Poucos se lembram do detalhe, mas há ainda dois mil soldados americanos na região da Síria onde o Estado Islâmico teve que ser arrancado a força. Trump provavelmente quer dar a missão por encerrada, mas resta a questão do que fazer com as prisões onde os ultrarradicais vivem sob vigilância de soldados curdos. É, obviamente, uma tremenda encrenca.
O encontro de Sharaa com Trump durou 33 minutos e tem uma carga simbólica que ainda está sendo absorvida. É bom ou ruim que o presidente americano se encontre com um ex-jihadista? Alguns analistas acham que Trump deu mais do que recebeu.
Foi ousado ou crédulo? Até o New York Times ficou sem palavras, pelo menos momentaneamente. Claro que logo voltará a criticar o presidente, às vezes com razão, outras – e mais frequentes – com exagero.
O veredicto ainda está em aberto. Mas não deixa de ser supremamente irônico ver as guinadas que Trump está dando. Será a questão insolúvel de Gaza a próxima?
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