Em pronunciamento aos israelenses com claro propósito de reverberar em outros cantos do mundo, Benjamin Netanyahu apareceu recentemente na TV anunciando que seu gabinete havia aprovado um novo plano para Gaza, o enclave com o qual trava uma guerra desde outubro de 2023, quando os terroristas do Hamas ali baseados capitanearam um ataque que resultou em 1 200 mortes e 250 reféns. A ideia, sempre acalentada mas nunca expressa com todas as letras até aquele momento, é acionar o Exército, convocando milhares de reservistas, para tomar de vez o estreito e explosivo trecho de terra às margens do Mediterrâneo, povoado hoje por 2,3 milhões de palestinos.
Netanyahu explicou o que planeja com detalhes: seu projeto inclui a criação do que chamou de “área humanitária”, onde a população se espremeria inicialmente em uma fração de 25% do território para depois, de acordo com observadores da região, acabar provavelmente debandando por falta de condições mínimas para viver. “As forças israelenses não intervirão apenas para se retirarem mais tarde. Não estamos aqui para isso”, esclareceu o primeiro-ministro.

O endurecimento do discurso, feito sob medida para agradar a coalizão de extrema direita que sustenta Netanyahu no poder e nunca escondeu o desejo de anexar Gaza, foi repudiado dentro e fora do país por pessoas de matizes ideológicos diversos e até por aliados, que silenciaram sob os holofotes, mas fizeram vazar ácidas críticas ao plano, trazido à luz em meio a um drama humanitário que ganha contornos trágicos — 93% dos habitantes do enclave estão em situação de “insegurança alimentar”, segundo recém-divulgado relatório da ONU.
Mas não é apenas a política interna e a própria sobrevivência no cargo que fazem Netanyahu caminhar ainda mais para o radicalismo. Também as circunstâncias geopolíticas andam especialmente desfavoráveis para o primeiro-ministro, que precisa demonstrar força diante do afastamento dos Estados Unidos, historicamente o maior de todos os apoiadores de Israel — um movimento capitaneado pelo presidente Donald Trump, que fez um giro esta semana pelo Oriente Médio. O recado político foi dado pela escolha do roteiro.

Bem a seu estilo, o atual ocupante do Salão Oval armou sua agenda, que incluiu passagens pela Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos, sem dar ouvidos aos pedidos de emissários de Netanyahu de lhe prestar uma visita. O que Trump quer mesmo, em seu afã de se estabelecer no cenário internacional como “o pacificador”, é o retorno ao cessar-fogo que o primeiro-ministro interrompeu em março, bloqueando a entrada de mantimentos em Gaza, e a devolução dos reféns. Na segunda-feira 12, o israelo-americano Edan Alexander, um dos 58 em poder do Hamas (nem todos vivos), acabou sendo libertado em inédita tratativa direta entre a Casa Branca e o grupo terrorista. Netanyahu não foi ouvido nem avisado, e nada falou. De acordo com integrantes do séquito trumpista, as conversas com o Hamas seguem. “Os EUA continuam a ser os mais fortes aliados de Israel e seu principal fornecedor de armas, mas Trump promove agora uma política para o Oriente Médio que colide com os interesses de Netanyahu”, diz o americano Asher Kaufman, especialista em direito internacional da Universidade de Notre Dame.
O roteiro de Trump pela região é emblemático do descompasso entre os dois líderes — a começar pelos compromissos assinados com a Arábia Saudita, país com o qual Israel não tem relações comerciais nem diplomáticas. Em meio à troca de sorrisos com o príncipe herdeiro e primeiro-ministro do reino, o ditador Mohammed bin Salman, o americano selou o maior acordo da história da indústria de defesa dos Estados Unidos, que vão fornecer aviões, baterias antiaéreas e aparatos de comunicação para o Exército da nação que se assenta sobre vastas reservas de petróleo. Os tratados de cooperação com o maior e mais rico mercado consumidor local somam 600 bilhões de dólares, abrangendo setores como mineração, energia e inteligência artificial.

A portas fechadas, Trump e MBS, como o príncipe é conhecido, tocaram em um tópico espinhoso e de interesse israelense — a adesão dos sauditas aos Acordos de Abraão, já celebrados por Emirados Árabes e Bahrein durante a primeira passagem do americano pela Casa Branca. Esse passo, porém, significaria o reconhecimento do Estado de Israel e a normalização dos elos diplomáticos entre ambos, justamente o que MBS atrela à criação de uma nação palestina — algo cada vez mais longe de acontecer. Indagado sobre o assunto, Trump se limitou a dizer: “Os sauditas têm seu próprio tempo”.
Outro movimento no xadrez geopolítico do qual Israel não gostou nada foi a promessa do governo americano de suspender as sanções econômicas que havia imposto à Síria ainda no tempo do ditador Bashar al-Assad, deposto no ano passado. Ao lado do presidente interino Ahmed al-Sharaa, um ex-integrante da Al Qaeda, Trump, que se referiu a ele como “jovem, atraente e durão”, conferiu tom épico à decisão, afirmando que traria “uma chance de grandeza” a Damasco. Ainda deu tempo de dar um pulinho no Catar, o abastado emirado que quer presenteá-lo com um Boeing 747-8 avaliado em 400 milhões de dólares. O mimo, planejado para ser um verdadeiro “palácio voador”, pode substituir o tradicional Air Force One. Possíveis implicações éticas e legais estão sendo analisadas pela Casa Branca, já que a aeronave, de valor sem precedentes mesmo no generoso mundo das trocas de gentilezas da diplomacia, ficaria com Trump inclusive após o fim de seu mandato.
Enquanto o presidente americano distribuía apertos de mão pela trilha árabe, na quarta-feira 14 Israel bombardeava a porção norte de Gaza, deixando cinquenta mortos no entorno do campo de refugiados de Jabalia. Na véspera, as tropas de defesa israelense haviam atacado o Hospital Europeu, um dos poucos centros médicos ainda operantes no enclave, este na área ao sul, sob o pretexto de tentar aniquilar um comandante do Hamas. Enormes crateras abertas davam a dimensão da investida que ceifou a vida de 28 civis, entre eles pacientes do hospital. Até agora, o confronto que se arrasta há mais de um ano já contabiliza um trágico saldo de 53 200 vítimas fatais. “Eles precisam de água, alimentos e assistência médica, mas estão recebendo bombas”, disse Jens Laerke, o porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).

Os novos planos de Netanyahu para Gaza, que enterram a solução desenhada ao fim da Segunda Guerra de instalar dois Estados naquele pedaço do Oriente Médio, levaram à suspensão por prazo indeterminado das rodadas de negociação em torno de um novo cessar-fogo, já que o que estava em vigor foi há dois meses interrompido pelo primeiro-ministro, e deixaram ainda mais incerta a situação dos reféns nas mãos do Hamas. Também fizeram com que a diplomacia americana diretamente envolvida no desfecho do conflito se reunisse com autoridades israelenses para tratar de alternativas — uma delas seria dar o controle provisório do enclave aos Estados Unidos. Em paralelo, o país cuidaria da entrada de ajuda humanitária. Nada, porém, ficou decidido. O máximo que Trump fez, em seu tour pelo Oriente, foi soltar uma frase vaga: “Ficaria orgulhoso se os EUA tornassem Gaza uma zona de liberdade”.
Mais tímida foi a reação da União Europeia. Reunidos em Varsóvia, os ministros de Relações Exteriores do bloco foram veementes nos bastidores em sua crítica ao corte de alimentos e remédios aos palestinos. Mas, na hora dos holofotes, quase ninguém manifestou indignação. Em nota, apenas seis países, entre os quais Espanha, Irlanda e Luxemburgo, fizeram oposição ao projeto de Netanyahu. É outra peça do complicado jogo diplomático da guerra que torna o destino de Gaza cada vez mais incerto.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944
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