17 de maio de 2025

Em meio à batalha entre China e Estados Unidos, Br…

Nas últimas semanas, o Ministério das Relações Exteriores ventilou a ideia de que Lula embarcaria para a China tentando escapar ao máximo da armadilha de tomar partido na batalha comercial que se instalou entre o dragão asiático e os Estados Unidos. Diante do tarifaço cheio de idas e vindas promovido pelo governo Donald Trump, o Itamaraty enfatizava que o presidente brasileiro estaria disposto a sentar-se nas duas pontas da mesa de negociações. “O encontro não terá caráter antiamericano”, garantiu a VEJA um diplomata envolvido na organização da viagem. Mas mal Lula pôs os pés em Pequim, na segunda-feira 12, não demorou a desmentir a própria comitiva. “Eu não me conformo com a taxação que Trump impôs ao planeta Terra”, disparou diante de uma plateia de empresários.

Essa novela comercial promete ainda novos capítulos e o desfecho parece cada vez mais imprevisível. Na mesma segunda-feira das declarações de Lula em Pequim, aliás, China e Estados Unidos anunciaram um acordo para a redução das tarifas. O momento delicado e instável exige pragmatismo e equilíbrio — Lula segue na direção contrária disso. Antes da visita à China, em entrevista à revista The New Yorker, o presidente afirmou não ter qualquer interesse em falar com Trump, dando contornos ideológicos à sua argumentação: “Juntos, China e Brasil podem fazer com que o Sul Global seja respeitado no mundo. Nossa parceria é indestrutível”, declarou, em tom épico.

arte Lula na China
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Se o governo deixar as bravatas de lado e agir com o devido cuidado daqui para a frente, a guerra tarifária entre as duas superpotências pode soprar a favor de alguns dos setores mais dinâmicos da economia brasileira, sobretudo no fornecimento a Pequim de produtos agropecuários que concorrem com os dos Estados Unidos. Foi nesse agitado cenário que Lula cruzou o Atlântico para tomar parte do fórum da Comunidade dos Estados Latino-­Americanos e Caribenhos (Celac) na condição de convidado especial de Xi Jinping, que lhe estendeu o tapete vermelho em reconhecimento ao papel central que o Brasil tem atualmente nos megalômanos planos chineses de ampliar seu raio de investimentos na América Latina.

Foi o terceiro encontro entre Lula e seu par chinês desde o início do terceiro mandato e, em pouco mais de meio século de relações diplomáticas, nunca houve momento tão promissor como o atual, segundo os especialistas, dada a confluência de interesses — “uma era de ouro”, como tratam de classificar altos quadros do Partido Comunista chinês. “Diante da onda crescente do unilateralismo e do protecionismo, a China está pronta para juntar as mãos com seus parceiros da América Latina e do Caribe”, discursou Xi ao lado de Lula, com quem havia dias antes prestigiado as celebrações de oitenta anos da vitória soviética sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial, evento encabeçado em Moscou por Vladimir Putin — a quem ambos, aliás, acabaram por ajudar no propósito de mostrar ao mundo que não está tão isolado assim. O preço que Lula pagou por isso foi alto, aparecendo na foto do evento ao lado de problemáticos políticos da África e figurando como o único representante de uma grande democracia do mundo a topar a parada.

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No caso da nova visita à China, foi o estreitamento dos laços comerciais o que mais mobilizou, de longe, ele e Xi nas 48 horas de costuras na abafada Pequim. No fim, o líder chinês anunciou a oferta de 52 bilhões de reais em linhas de crédito à América Latina, além de novos investimentos. Só com o Brasil, foram selados quase trinta acordos. Tudo para alastrar o raio de influência chinês nestas bandas do planeta. A promessa das empresas, por sua vez, é de canalizar 27 bilhões de reais em iniciativas que incluem dar um empurrão à indústria automotiva nacional e até a vinda de um aplicativo de entregas, o Keeta, para rivalizar com o iFood. “Com Trump reduzindo a relevância econômica americana no cenário internacional, Brasil e China podem se beneficiar com o aprofundamento do comércio bilateral e a cooperação mútua”, avalia Scott Kennedy, especialista do centro de pesquisas CSIS, baseado em Washington. Do ponto de vista das relações entre China e Brasil, a única nota destoante da visita foi uma polêmica relacionada ao TikTok. A primeira-dama Janja teria questionado Xi Jinping num jantar sobre o apoio da rede social chinesa à direita radical brasileira. Diante da repercussão pública dessa tremenda saia justa, Lula saiu em defesa dela em entrevista coletiva, dizendo que a questão sobre o TikTok, na verdade, teria sido formulada por ele e que solicitou ao mandatário chinês que mandasse uma pessoa de sua confiança para discutir a regulamentação das redes no Brasil, sem levar em consideração que não cabe a qualquer personalidade estrangeira dar pitaco sobre questões internas e soberanas da nação.

ENERGIA DE SOBRA - Usina eólica: os chineses apostam alto em fontes renováveis no Nordeste
ENERGIA DE SOBRA - Usina eólica: os chineses apostam alto em fontes renováveis no Nordeste (Philippe TURPIN/Photononstop/Getty Images)

Aparentemente, o episódio ficou só no constrangimento da hora e não deve prejudicar o esforço do Brasil em aprofundar o elo com seu principal parceiro comercial, com o qual sustenta hoje negócios na casa dos 170 bilhões de dólares, entre importações e exportações (veja o gráfico). Inflar as vendas de carne bovina, suína e de frango para o superlativo mercado consumidor chinês aparece em um rol de 400 oportunidades mapeadas pelo governo brasileiro que já contam com a adesão de empresários. Apostando as fichas na janela que agora se abre, associações de exportadores desses produtos até se uniram para inaugurar um escritório em Pequim. Outra grande expectativa é que o gigante asiático compre mais soja brasileira, uma vez que a americana encareceu. “O maior problema hoje está no nosso lado. Nossos portos e rodovias são pouco eficientes”, reconhece Maurício Buffon, presidente da Aprosoja, que reúne produtores.

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Atrair investimentos para melhorar a combalida infraestrutura nacional também figura na ordem do dia. Empresas de energia que já atuam em solo brasileiro anunciaram ampliação de suas atividades na área de energia renovável. A companhia oriental CGN planeja um aporte de 3 bilhões de reais para construção de parques eólicos e solares no Piauí, enquanto a Envision fala em direcionar 5 bilhões para a fabricação de hidrogênio verde e combustível de aviação carbono zero. O Grupo Cofco, de alimentos, expande no Porto de Santos seu maior terminal fora da China, investimento de 1,7 bilhão de reais para movimentar 14,5 milhões de toneladas por ano. “A melhoria da infraestrutura é parte importante da integração da América do Sul, e a cooperação com a China contribui para isso”, diz Zhou Zhiwei, do departamento de estudos brasileiros da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

COMIDA - À mesa no Oriente: o plano do Brasil é aumentar exportação de carne
COMIDA - À mesa no Oriente: o plano do Brasil é aumentar exportação de carne (Cheng Xin/Getty Images)

Não é de hoje que a China se volta para este naco do mundo. Desde 2005, a América Latina recebeu 120 bilhões de dólares em empréstimos para projetos em energia e transporte. Parceiro estratégico, o Brasil é o segundo maior beneficiário desse duto de crédito (atrás apenas da Venezuela), tendo recebido 25% do bolo. Em contrapartida, a nação de Xi costuma pressionar o Brasil a aderir à chamada Nova Rota da Seda, o plano de investimentos globais do governo chinês ao qual já ingressaram 21 membros da Celac. Até agora, o Brasil vem resistindo à investida por entender que o gesto poderia fazer fervilhar ainda mais o caldeirão das polarizações que põe americanos e chineses em polos opostos. A reação americana à decisão da Colômbia de integrar a rota, na semana passada, foi instantânea e veio embutida de ameaças de que os Estados Unidos parem de comprar insumos estratégicos do país comandado pelo socialista Gustavo Petro, também presente no encontro de Pequim.

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Apesar dos esforços chineses para buscar mercados alternativos e contornar a muralha tarifária de Trump, não há como não sentir o baque — o mercado inclusive já revisou de 4,6% para 4,2% a projeção de crescimento do PIB chinês para 2025. A resposta do gigante asiático comandado por Xi não é nova — subir os gastos públicos com investimentos em infraestrutura e aumentar empréstimos para fomentar o consumo interno, especialmente de bens duráveis, como eletrônicos. Para o Brasil, a aproximação com o dragão que afia suas garras contra os inimigos e afaga quem vê como aliado pode ser um trunfo para dar gás ao crescimento, e quem sabe melhorar a popularidade de Lula, de modo a ajudá-lo a pavimentar a trilha rumo a 2026. O plano exige o equilíbrio que faltou ao petista em manifestações recentes. Inclinar-se a Pequim, sem atrair a ira de Trump, eis a questão.

Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944

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