30 de maio de 2025

Sorvete sabor de Guerra Fria II — “Fala, Ayub!”

Em pleno aquecimento global ainda veremos uma nova Guerra Fria. Se ninguém virar o leme, estamos no rumo de um novo conflito deste tipo. Em 2028 os estadunidenses elegerão o próximo presidente e independentemente de ser o mesmo ou um novo, ele terá que decidir se manterá as sanções, embargos e taxas contra a China. Se a próxima presidência mantiver essas decisões, será o marco do início dessa Guerra Fria II. Digo isso pois no ramo da tecnologia estamos testemunhando a montagem do mis en place. Observe as tigelas com os ingredientes a seguir.

Como responsável técnico por redes e data centers, voltei a receber pedidos de atestados, memorandos de entendimento ou cláusulas contratuais de empresas estadunidenses que para atendê-las no Brasil, não poderemos usar produtos de fabricantes chineses, o que aqui no Brasil é consideravelmente difícil evitar a Huawei como fornecedor.

Cabo submarino virou assunto geopolítico

O governo italiano, que havia privatizado o controle de sua empresa de cabos submarinos (TI Sparkle) em 1994, voltou a ter o controle estatal ao adquirir de volta 70% de suas ações agora em 2025, num raro movimento de re-estatização de empresas de telecomunicações que haviam sido privatizadas na década de 90, como a brasileira Telebras. Tal compra acontece em meio a um noticiário de embarcações de bandeira chinesa partindo de portos russos envolvidas em rupturas de cabos submarinos na Europa. Cabo submarino virou assunto geopolítico e o estado italiano os readquiriu.

Há poucos dias, Xiaomi anunciou a criação de um chip próprio de alta performance para celulares, o Xring 01, ganhando independência nos seus modelos top de linha dos chips Snapdragon antes fabricados pela estadunidense Qualcomm. Antes, apenas a coreana Samsung (Exynos) e a Apple tinham criado chips SoC para os próprios telefones e tablets. Xiaomi acaba de entrar para esse seleto grupo tecnológico.

Por fim, a notícia que mais me espantou foi o lançamento da nova versão do HarmonyOS, sistema operacional da Huawei. Nas versões anteriores, a chinesa Huawei que é a 103ª maior empresa em faturamento do mundo no ranking da revista Fortune, optou por um atalho tecnológico que o padrão de mercado: utilizou o núcleo do sistema operacional (kernel) já existente e softwares de código aberto. É assim que a Apple fez o MacOS (usando muitos softwares do mundo BSD) e o que a Google fez com o Android (usando kernel Linux).

Nas primeiras versões do HarmonyOS, voltado para dispositivos IoT, TVs, smartwatches, tratava-se sim de uma base Android com kernel Linux. No anúncio da Huawei de 2025, não só anunciaram o OS para uso em computadores pessoais como eles jogaram fora o kernel Linux e desenvolveram o próprio microkernel de código fechado e isso é uma decisão de engenharia impressionante e ousada. Temos um Sistema Operacional chinês com a menor dependência tecnológica da história de softwares de outras nações.

“Aquilo que não me mata, só me fortalece” disse Nietzsche e nos demonstra a Huawei. A Microsoft foi impedida pelo embargo dos EUA de renovar o contrato das licenças Windows OEM para computadores fabricados pela Huawei. Como reação, os laptops lançados pela empresa em 2024 vinham com Linux e os novos lançamentos de 2025 estão vindo com o novo HarmonyOS, fechando as janelas da Microsoft para o mercado chinês.

Quem teme o código fonte aberto assim já está temendo algo muito pior

O Linux é um dos maiores e melhores softwares já escritos pela humanidade. São 40 milhões de linhas de código fonte, escrito por mais de 25 mil programadores atuando em mais de 1.700 empresas diferentes.  Jogá-lo fora para reinventar a roda de um software de código fonte aberto, em que sua cópia é livre, seu funcionamento pode ser auditado e modificado, é um sinal que sequer os benefícios open source inspiram confiança da empresa chinesa. Vejo como um movimento para se proteger de possíveis interferências em código fonte aberto, num uso geopolítico de softwares que justamente por terem total transparência deveriam inspirar a confiança e a autonomia. Quem teme o código fonte aberto assim já está temendo algo muito pior.

Diferentemente dos economistas e analistas de investimento que não avisam que erraram no passado, te confesso que já errei nas minhas previsões. Supus que após a pandemia de 2019, o mundo recuaria na indústria just in time e se protegeria da China como fornecedor único de vários produtos. O que está acontecendo é o contrário: é a China se protegendo do resto do mundo, daquilo que está fora de casa e de seu quintal. As decisões e falas ambivalentes do Brasil no governo atual não são fruto de um pragmatismo diplomático e sim uma dúvida sobre qual quintal se afiliar.

Essa é a Guerra Fria II: em todos os territórios desse tabuleiro multipolar do War, do Alaska, passando pela Inglaterra até Vladvostok, sem o disparo de qualquer arma mas sempre na iminência de um apocalipse, potências disputam a supremacia tecnológica, a cadeia produtiva e o mercado consumidor em territórios que consideram como se fossem seus.

Se entrarmos numa cozinha e encontrarmos farinha, manteiga, ovos, cenoura, calda de chocolate, não é ousadia deduzir que teremos um bolo de cenoura. Com todos esses ingredientes na mesa e uma renovação das ofensivas estadunidenses contra o mercado chinês, não sei dizer qual sabor será da sobremesa, mas sei dizer que será sorvete.

*** Você acabou de ler a coluna “Fala, Ayub!”
 

Source link

About The Author