Na primavera de 2022, um lote de móveis antigos chegou a uma galeria de arte em Magyarpolány, no interior da Hungria. Era mais uma entre tantas aquisições da Cogito Art, negócio familiar dedicado à compra, restauração e revenda de antiguidades. Entre armários e objetos esquecidos pelo tempo, havia também um violino — gasto, com acabamento irregular e aparentemente sem grande valor. Mas o que parecia ser apenas um item secundário logo se revelou, recentemente, uma descoberta histórica: dentro do corpo da peça, escondida sob o tampo, havia uma pequena nota escrita a mão, datada de 1941: “Instrumento de teste, feito em condições difíceis, sem ferramentas e materiais. K.L. Dachau. Ano 1941. Franciszek Kempa”.
O bilhete, assinado por um prisioneiro judeu do campo de concentração de Dachau, na Alemanha, trazia não só a origem do instrumento como também um raro testemunho material da vida possível ante o horror. O autor da frase era um luthier polonês que recorreu ao ofício para sobreviver — e deixou, sem saber, um legado de resistência talhado em madeira.

Kempa sobreviveu à guerra. Após a libertação do campo nas proximidades de Berlim, em abril de 1945, ele retornou à Polônia e seguiu trabalhando como artesão de instrumentos até sua morte, em 1953. O violino, no entanto, tomou outro caminho: ninguém sabe ao certo como atravessou fronteiras. Guardado por décadas, escapou da destruição e do esquecimento até cair nas mãos dos antiquários húngaros, que trataram de olhá-lo com mais cuidado e alguma emoção. O casal que cuida do antiquário magiar batizou a joia de “violino da esperança”, por óbvios motivos. A má qualidade da madeira e dos encaixes contrastava com a evidente precisão do acabamento. Foi essa dissonância que os levou a desmontar o conjunto em busca de mais informações, para responder ao enigma: de onde viera? Nesse processo, foi encontrado o lindo bilhete escondido, lembrança de um tempo que não pode voltar.
Embora os nazistas tenham incentivado apresentações musicais nos campos — muitas vezes para fins de propaganda, como se houvesse alguma normalidade —, todos os instrumentos até então conhecidos haviam sido levados de fora para dentro pelos próprios prisioneiros, tendo sido confeccionados para além dos muros da vergonha. O violino feito por Kempa é um dos poucos construídos dentro de um campo de concentração. “As pessoas faziam de tudo para manter a música viva em suas vidas, até mesmo nos campos de concentração”, disse a VEJA o luthier israelense Avshi Weinstein, do projeto Violins of Hope, que restaura instrumentos ligados ao Holocausto. Ele diz conhecer apenas outro caso semelhante: “Ouvi relatos sobre luthiers trabalhando em campos, mas são raríssimos”.

O projeto que Avshi mantém com o pai, Amnon Weinstein, presta um serviço à memória judaica, em particular, e para toda a humanidade. Os instrumentos usados pelos nazistas para humilhar e controlar judeus são hoje símbolos de resistência. A proposta do projeto é inverter o uso que os nazistas faziam da música nos campos de concentração, transformando os violinos em testemunhos de resiliência e sobrevivência.
É bonita trajetória. A ligação entre a tradição judaica e os instrumentos de corda é profunda. Violinos, violas e cellos marcaram durante séculos a vida comunitária de judeus na Europa Central e Oriental. No início do século XX, era comum que músicos buscassem violinos com estrelas de Davi incrustadas, que os ajudavam a conquistar a aprovação de rabinos e a render aplausos demorados nos casamentos e, quem sabe, alguns contratos. As cordas a ressoar não entregavam apenas diversão — eram parte da estrutura social e espiritual das comunidades.
O destino final do violino de Dachau ainda não foi definido. Mas o que ele carrega, de mãos dadas com sua fragilidade, é irreversível. Em meio à barbárie, alguém se agarrou ao que sabia fazer, e com isso deixou um registro de dignidade, perseverança e arte. Mesmo onde tudo parecia ruir, fez-se arte.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947
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