8 de junho de 2025

Estrela africana: como Ruanda entrou no radar de T…

Situada na África Oriental, Ruanda ingressou na cena internacional de forma inesperada, mas muito bem planejada. A frase “Visit Rwanda” estampa camisas do Paris Saint-Germain, recém-sagrado vencedor da Liga dos Campeões da Europa. Também no uniforme do inglês Arsenal, do alemão Bayern de Munique e do espanhol Atlético de Madrid avista-se o incentivo para conhecer esse quinhão do planeta pouco menor que o estado de Alagoas. A capital Kigali virou parada para turnês de estrelas do quilate de John Legend, jogos entre grandes times da NBA e etapas do ciclismo mundial. Até negociações para corridas da Fór­mu­la 1 estão em andamento.

Com vultosos investimentos em marketing, a cidade sedimentou a imagem de lugar limpo e organizado, o que ajudou a impulsionar o turismo. De lá, partem excursões para deslumbrantes parques nacionais, onde se observam gorilas-das-montanhas, leões e elefantes. “Atrações e eventos como esses estão dentro do nosso obje­tivo de mostrar o que temos a oferecer de melhor ao mundo”, disse Jean-Guy Afrika, CEO do Conselho de Desenvolvimento de Ruanda.

Nos últimos tempos, porém, Ruanda, que tenta se fincar no tabuleiro à base de muito soft power, tem aparecido nas rodas globais de conversa por outro motivo. O autocrata Paul Kagame, eternizado na presidência há três décadas em um regime sem eleições para valer, vem costurando com o governo de Donald Trump um acordo para receber imigrantes com antecedentes criminais que já cumpriram pena nos Estados Unidos. É um negócio que pode engordar o caixa ruandês — em abril, os americanos deportaram para lá um refugiado iraquiano ao custo de 100 000 dólares. A ideia trumpista não chega a ser original. Em 2024, o Reino Unido quase selou contrato similar na casa de 500 000 dólares para despachar para o país 50 000 imigrantes ilegais durante cinco anos. Acabou não saindo do papel diante da mais do que justificada fama que pesa sobre Ruanda, palco de um dos mais brutais genocídios da história nos anos 1990 e nação conhecida por tolher liberdades individuais. “Ao longo da ditadura de Kagame, instalou-se um estado policial totalitário sob qualquer aspecto”, afirma Jeffrey Smith, fundador da organização sem fins lucrativos pró-democracia Vanguard Africa.

NO COMANDO - O autocrata Kagame: no poder há quase três décadas
NO COMANDO - O autocrata Kagame: no poder há quase três décadas (Presidency Of Rwanda/Anadolu/Getty Images)

Os Estados Unidos não buscam nestas bandas apenas um pouso para os imigrantes dos quais quer se livrar, mas estão também de olho no terreno fértil em minerais de Ruanda e de seu vizinho, a República Democrática do Congo. O governo Trump se mexe justamente para tentar se infiltrar ali e firmar parcerias que renderiam matéria-prima vital para fazer girar a indústria da tecnologia. Mas há um enrosco no meio do caminho. Ruanda apoia uma milícia no lado congolês da fronteira, a M23, que capturou duas cidades no início do ano, cortando ajuda, alimentos e itens básicos para mais de 2 milhões de habitantes. O objetivo, segundo Kagame, seria erradicar combatentes ligados ao genocídio de três décadas atrás — aquele que opôs as etnias hutu (a vencedora, à qual ele pertence) e tutsi, em um sangrento duelo civil retratado no filme Hotel Ruanda. A ONU diz que o verdadeiro plano ruandês é extrair os tão ambicionados minerais do vizinho e, se der, ainda converter o naco que já ocupa em território independente.

Continua após a publicidade

Parece valer tudo para fazer cumprir a meta de Ruanda, que é encabeçar o crescimento da África. Hoje, o continente se encontra em rápida expansão, com população que deve responder por 25% dos habitantes do planeta até 2050 e economia crescendo à taxa de 4%. O PIB ruandês se destaca em meio às estatísticas africanas, cravando um avanço anual de 7%, ritmo que pode se manter por um bom período, segundo o Banco Mundial. Um amplo processo de urbanização recauchutou áreas inteiras da capital e das periferias, e os projetos de infraestrutura transformaram Ruanda em um dos mais atrativos pontos do continente, também para o turismo. Tudo vistoso, não fosse a mancha do atropelo dos direitos humanos dos ruandenses e da autocracia que domina o país, fatores que não combinam com a ambição de soft power.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947

Source link

About The Author