14 de junho de 2025

Protestos se espalham nos EUA e dão oportunidade p…

O roteiro parecia sob medida para Donald Trump. No último dia 6, o ICE, temida polícia migratória dos Estados Unidos, seguiu com sua política linha-dura e colocou atrás das grades, em Los Angeles, quarenta estrangeiros sob suspeita de viverem na ilegalidade no país. Logo uma fatia da população, que andava algo apática em relação às frequentes investidas dos agentes, que têm batido de porta em porta em caçada sem precedentes aos imigrantes, tomou as ruas em protesto. Como em quase toda manifestação, essa nasceu com feições pacíficas, mas um grupo minoritário partiu para a violência, entrando em colisão com os policiais, saqueando lojas e ateando fogo em carros. E não deu outra: na mesma hora, alegando completo descontrole da situação — versão que tanto autoridades locais como os observadores de plantão negam —, Trump, em iniciativa raríssima e muito questionável, acionou a Guarda Nacional e fuzileiros, um contingente total de 5 000 militares, sem consultar o governador da Califórnia, Gavin New­som, o democrata que nunca lhe passou pela garganta.

PALANQUE - Newsom: o governador ganhou os holofotes
PALANQUE - Newsom: o governador ganhou os holofotes (Jason Armond/Getty Images)

Foi uma demonstração de força bem ao estilo Trump, que embutiu vários propósitos numa só tacada. Primeiro, direcionou-se contra a Califórnia, um estado que consta no rol dos “deep blue” — mais azul, ou democrata, impossível. É também comandado por Newsom, cujo nome circulou no último pleito presidencial e tem tudo para ser posto à mesa no próximo embate eleitoral, em 2028. Para completar, o assunto em questão — a imigração — é das bandeiras mais caras à Casa Branca, decisiva para mobilizar a turma trumpista, e qualquer brecha para lhe dar visibilidade é bem-vinda. Ir atrás dos estrangeiros em solo californiano, onde moram hoje 10,6 milhões deles com status variados, fez portanto sentido, sob vários ângulos, aos olhos do governo. “O presidente não tolera centros de poder antagonistas e se desdobra para controlá-los. A Califórnia é a Harvard da vez”, analisa o cientista político americano Henry Brady, em alusão à prestigiada universidade que virou saco de pancadas de Trump.

A chegada das tropas a Los Angeles só fez inflar as insatisfações e alimentar os protestos, que se espalharam por mais de vinte cidades do país, entre elas Nova York, Chicago e Seat­tle. Pelos contornos que as manifestações tomaram, já dá para dizer que, mesmo que percam o ímpeto, são as mais contundentes contra o governo desde a posse de Trump, em janeiro. A tensão estava instaurada antes de a Guarda Nacional e os fuzileiros entrarem em cena, mas certamente escalou depois que se incorporaram à paisagem de Los Angeles. Aquela fatia mais estridente dos insurgentes arremessou pedras contra os agentes federais e vandalizou o comércio, e as forças de segurança revidaram de cima de cavalos, que pisotearam pessoas, e atingiram dezenas com balas de borracha, inclusive uma jornalista australiana, imagem que viralizou, uma vez que ela estava no ar. A prefeita democrata Karen Bass, que como o governador também repudiou a tática trumpista, falou à população: “Todos têm o direito de protestar pacificamente, mas deixe-me ser clara: violência e destruição são inaceitáveis”. Depois, na terça-feira 10, decretou toque de recolher, fechando o centro da cidade durante a noite.

CAÇADA - Detenções: implementação da política radical
CAÇADA - Detenções: implementação da política radical (Andrew Lichtenstein/Getty Images)
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Para conseguir acionar tamanho pelotão sem o aval de Newsom, Trump alegou que a rebelião em curso era uma afronta “à autoridade dos Estados Unidos” e que precisava proteger agentes e edifícios federais. A manobra é permitida por lei, mas, por seu teor extremado, foi posta em prática uma única vez, em 1965, quando o então presidente Lyndon Johnson acionou os militares com objetivo bem distinto do de agora — queria justamente proteger protestos em prol dos direitos civis no estado sulista do Alabama. “Trump agravou deliberadamente situação já complexa, uma jogada para justificar o uso de mais repressão e exibir poder”, afirmou a VEJA a socióloga Caitlin Patler, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Nos últimos dias, em mais um aceno à sua base eleitoral fiel, o presidente vem flertando inclusive com a ideia de invocar a Lei da Insurreição, do século XIX, que permitiria o uso do Exército para reprimir a “revolta doméstica”, concedendo à tropa o direito de efetuar prisões, o que ela não pode fazer até este momento.

Não à toa, Stephen Miller, vice-­chefe de gabinete de Trump e um dos arquitetos de sua draconiana política imigratória, começou a classificar os protestos de “insurreição violenta” e adotou tom épico: o que se desenrola hoje na mais populosa cidade da Califórnia seria “uma luta para salvar a civilização”. Outros integrantes do governo insistem que as batidas do ICE miram criminosos e que são os radicais de esquerda, agindo contra a “detenção de gente perigosa”, os cabeças da agitação que tomou as ruas. Há tempos Trump desdenha da Califórnia por sua suposta leniência com estrangeiros ilegais e por ser, segundo ele, o mais fértil terreno para a disseminação da cultura woke, o exagero do politicamente correto que o presidente não cansa de atacar.

É NACIONAL - Manifestação em Nova York: a onda cresce país afora
É NACIONAL - Manifestação em Nova York: a onda cresce país afora (Adam Gray/Getty Images)
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Para Trump, fazer da Califórnia um alvo tem também objetivo eleitoral. É uma chance de começar a fincar os pés num estado que, após quatro décadas de supremacia democrata, encara seus dilemas, alguns deles produto do progressismo extremo ali implantado. Com uma política mais permissiva em relação a drogas, por exemplo, as cidades registraram seu acelerado crescimento, sobretudo nas prateleiras dos opioides, uma epidemia letal nos Estados Unidos. Outro calcanhar de aquiles é a população de rua, que se multiplicou à vontade até o próprio Newsom liderar o desmonte de acampamentos de sem-teto que lotavam as ladeiras de São Francisco. Em mais uma medida para se descolar do rótulo woke e se posicionar ao centro, o governador supervisionou pessoalmente medidas de endurecimento contra manifestações pró-Palestina que ultrapassaram limites em várias universidades e chegou a criar um podcast em que recebeu figuras como Steve Bannon, guru do trumpismo, além de romper com colegas de partido ao chamar de “injusta” a participação de atletas trans em esportes femininos — bandeira, aliás, abraçada por Trump.

DUELO DE GIGANTES - Trump e Musk: xingamentos cederam lugar ao silêncio
DUELO DE GIGANTES - Trump e Musk: xingamentos cederam lugar ao silêncio (Robert Schmidt/AFP)

Diante dos protestos em Los Angeles, Newsom vem demarcando terreno de forma eficiente, já com postura de candidato. “O destacamento da Guarda Nacional concretiza a fantasia perturbada de um presidente ditatorial”, disparou ele, ao avisar que levaria a Casa Branca à Justiça, acusando o presidente de “fabricar medo e terror” em seu estado. O desfecho do processo pode se arrastar por meses, mas o xadrez da política está sendo jogado a cada minuto. Os americanos, em geral, se opõem ao emprego da força nacional, mas 54% deles são favoráveis às medidas imigratórias do governo. O que Trump quer é colocar os democratas californianos no papel de defensores dos “estrangeiros infratores” e despachar para casa “20 milhões de indocumentados” (ou 11 milhões, de acordo com dados de institutos independentes). De um modo ou de outro, é uma multidão que, de acordo com especialistas, torna inexequível a meta de detenções e expulsões.

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Até agora, os protestos em Los Angeles são pequenos em comparação com outros que se espalharam pela cidade no passado. Mais de 12 000 pessoas foram presas durante os levantes de 1992 (contra as cerca de duzentas de hoje), desencadeados pela absolvição de policiais acusados de espancar até a morte um homem negro parado em uma blitz. Mas a situação ainda pode piorar, dado que a polícia americana é notoriamente truculenta na repressão a manifestações. E Trump parece disposto a seguir demonstrando força, no que faz também pela retórica mordaz.

ANTECEDENTE - Lyndon Johnson: Guarda Nacional foi acionada em 1965
ANTECEDENTE - Lyndon Johnson: Guarda Nacional foi acionada em 1965 (PhotoQuest/Getty Images)

Se nestes dias o governador da Califórnia vem sendo repetidamente chamado por ele de “Newscum” (trocadilho que faz alusão ao vocábulo escória, em inglês), na semana passada foi o ex-parceiro Elon Musk, o homem mais rico do planeta, que ficou na mira. Trump chegou a ameaçar cortar todos os vultosos contratos do bilionário com o governo, mas o tempo tratou de dar uma amainada no duelo de gigantes. O reality show presidencial terá novo capítulo no sábado 14, em Washington, quando o Exército completa 250 anos e Trump, 79. Mais uma oportunidade de ostentar poder, com desfile de tanques, aviões e milhares de soldados na rua.

Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948

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