16 de junho de 2025

entenda a legalidade e retroatividade da jurisprudência

As normas jurídicas têm inequívoca pretensão de orientar condutas, indicando o que é obrigatório, proibido ou permitido. Em alguns setores do Direito, especialmente aqueles restritivos de direitos de liberdade ou de propriedade – como o Direito Penal e o Direito Tributário –, essa função é ainda mais proeminente, explicitando-se por regras como a da legalidade em sentido estrito, da irretroatividade da lei mais gravosa e da taxatividade (ou mandado de determinação).

Nesses âmbitos, não é possível ao cidadão tomar decisões sobre fazer ou não algo se a regra jurídica não lhe diz claramente como se comportar (exigência de taxatividade), se há uma regra jurídica mais gravosa que surge após a sua tomada de decisão (exigência de anterioridade) ou se não há um texto a orientá-lo (exigência de lei escrita).

O ideal aqui colocado é o seguinte: num Estado de Direito, todo cidadão deve ter a possibilidade de, caso assim deseje, orientar sua conduta à luz das regras pertinentes. Por essa razão, elas devem ser verdadeiramente alcançáveis (claras, prévias, escritas), respeitando o que se convencionou chamar de legalidade em sentido amplo.

Contudo, essa compreensão da legalidade como suficiente a orientar as condutas depende, ao mesmo tempo, de uma compreensão da atividade interpretativa como algo meramente declaratório. Como se o julgador apenas descrevesse o que o legislador pretendeu dizer com uma determinada regra jurídica. Como se as palavras tivessem um sentido unívoco.

Ocorre que a atividade do intérprete também é constitutiva, englobando juízos de valor e tomadas de decisão quanto a múltiplas possibilidades de sentido. Como interpretar, por exemplo, a expressão “garantia da ordem pública”, constante no artigo 312 do Código de Processo Penal? Diante disso, é preciso distinguir o “texto” jurídico, que é o objeto da interpretação, da “norma” jurídica, que é o resultado da interpretação.

Parece-me inarredável a assunção da ideia de que a atividade do julgador é também, em alguma medida, aditiva. Ou seja, quando um tribunal interpreta uma regra jurídica, ele no mínimo indica, dentre os sentidos possíveis, aquele que deverá prevalecer. Ao mesmo tempo, ele não pode dilacerar o limite de sentido presente nas palavras escolhidas pelo legislador.

Esse equilíbrio, por óbvio, não é simples. Veja-se a dificuldade em interpretar a expressão “impedindo ou restringindo o exercício de poderes constitucionais”, presente no crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L, Código Penal).

Quais seriam os poderes constitucionais? Apenas aqueles referentes ao Legislativo, Executivo ou Judiciário? Qualquer poder concedido pela Constituição – por exemplo, os atribuídos ao Ministério Público, considerado tradicionalmente externo aos Três Poderes, etc.?

Pela natureza imprecisa da linguagem, o Poder Legislativo entrega um trabalho ainda inacabado tanto ao cidadão quanto ao aplicador da regra jurídica – o juiz. Tudo isso leva à seguinte constatação: para um cidadão tomar sua decisão e orientar seu comportamento, não basta ler a lei. É preciso verificar como os tribunais interpretam aquela lei, inclusive porque, como dito, a atividade jurisdicional não é meramente declaratória, é também constitutiva.

Há, assim, ao menos duas situações concretas problemáticas. A primeira: retroatividade de jurisprudência mais gravosa. Exemplo: um cidadão atua confiante em determinado entendimento jurisprudencial que qualificou condutas iguais à sua como lícitas.

O entendimento jurisprudencial, no entanto, é alterado, de tal maneira que sua conduta, antes reputada lícita, tornou-se ilícita. O cidadão é processado criminalmente e condenado sob o argumento de que a lei sempre esteve lá, tratando-se de mera alteração jurisprudencial. A segunda: irretroatividade de jurisprudência mais benéfica. Exemplo: o cidadão é criminalmente processado e condenado.

O entendimento jurisprudencial, no entanto, é alterado, de tal maneira que sua conduta, antes reputada ilícita, tornou-se lícita. O cidadão busca reverter sua condenação já transitada em julgado com base na nova interpretação dada à lei, mas é impedido sob o argumento de que a lei sempre esteve lá, tratando-se de mera alteração jurisprudencial.

Ambas as questões demandam urgente reflexão. A segunda está afetada à Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tema 1331, que irá “definir a possibilidade de aplicação retroativa de jurisprudência mais benéfica ao acusado”. Critérios precisarão ser demarcados com rigor, especialmente quanto às qualidades de decisões invocadas como “jurisprudência”, mas espera-se que, em alguma medida, a regra de que a “lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5.º, inc. XL, CF) seja lida, em suas entrelinhas, como “(a interpretação d)a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Somente uma compreensão esvaziada do seu próprio papel permitirá ao STJ ignorar a necessária ressignificação da legalidade em Direito Penal.

(*) Raquel Scalcon, professora de direto na FGV SP, consultora e parecerista, através do Estadão

 

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