7 de junho de 2025

O complexo de Deus dos líderes

“O imperador, pela graça do Céu, decreta…” Assim começavam os decretos da China imperial, numa alusão ao mandato celestial, a legitimidade supraterrena dos seus portadores. Os imperadores podiam mantê-lo ou perdê-lo, geralmente por eventos como terremotos, enchentes, fome e, claro, derrotas militares. Nesse caso, o novo líder levava o mandato celestial. Era um conceito menos rígido do que o direito divino nos países ocidentais, inseparável das linhas dinásticas, até ser revolucionado por Napoleão. O homem que pôs a Europa num liquidificador de disrupções tinha tantas ambições que se tornou o paradigma do complexo de Deus, o governante imbuído de uma missão divina ou messiânica que pode até deixar de se achar ungido e encarnar a própria divindade.

Muitos dos mecanismos republicanos foram criados para nos proteger das exorbitâncias de líderes carismáticos que se põem acima das instituições. Dois deles governam as duas maiores repúblicas americanas e ambos se consideram ungidos. Recentemente, Donald Trump e Lula falaram sobre isso. O presidente americano, num meme em que diz ter recebido “uma missão de Deus” enquanto caminha por uma rua sombria. “E nada pode impedir o que está por vir”, acrescenta, numa indireta às teorias conspiratórias sobre seu papel contra elites podres. A fala de Lula, na inauguração de uma obra do projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, já se tornou um clássico do asneirol: “Deus deixou o sertão sem água porque ele sabia que eu ia ser presidente e que eu ia trazer água para cá”.

“A narrativa tem um forte apelo para o eleitorado religioso. O que é convicção sincera, o que é oportunismo?”

No caso de Trump, o narcisismo foi alimentado pelos pouquíssimos centímetros que o separaram de uma ponta de orelha ralada de um tiro de fuzil no crânio. Salvar-se de um atentado introduz nesse espaço outro portador autodesignado de uma missão messiânica, Jair Bolsonaro. Qualquer pessoa que não deixe as preferências políticas dominarem todos os seus pensamentos pode entender como escapar da morte cria ou aumenta a crença na mão de Deus. “Mudou alguma coisa em mim”, disse Trump numa das vezes em que se referiu a uma interferência divina no palanque do comício em Butler, no ano passado. O que é convicção sincera, o que é oportunismo? Lula realmente acredita que Deus tinha um calendário das eleições brasileiras? Deus como cabo eleitoral não é um desrespeito?

A narrativa da missão divina tem um forte apelo para o eleitorado religioso, em especial evangélico, um público que conhece o versículo bíblico do Livro dos Juízes: “E levantou o Senhor juízes, que os livraram da mão dos que os despojaram”. Juízes, no caso, são líderes salvadores da nação, não se restringe ao papel de juristas, embora hoje o complexo de Deus também atinja muitos que deveriam se ater aos autos e ao nobre e exigente papel de julgadores, mas ultrapassam amplamente sua competência. No livro bíblico, quando morriam os ungidos designados para salvar os israelitas de inimigos externos e de si mesmos, os objetos de salvação “reincidiam e se corrompiam ainda mais que seus pais, andando atrás de outros deuses, servindo-os e adorando-os”. Não deixa de ser um alerta aos salvacionistas: seu mandato é de curta duração e, como o dos imperadores chineses, caprichoso como um céu cheio de nuvens.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947

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