Um ano após as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, organizações internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Anistia Internacional denunciam a resposta das autoridades brasileiras, destacando falhas na reconstrução “lenta e desigual” do estado e a negligência governamental em relação a populações vulneráveis. Embora programas habitacionais federais e estaduais estejam em andamento, eles não conseguem atender à demanda crescente de famílias desabrigadas.
Em relatório divulgado na semana passada, a Anistia Internacional listou a tragédia gaúcha — que completou um ano na última terça-feira — entre os desastres em que governos “não tomaram as medidas necessárias” para proteger suas populações. O documento aponta omissões em diferentes esferas do poder público e critica a ausência de um plano eficiente de prevenção e resposta diante dos impactos das mudanças climáticas.
No documento, é citado que as enchentes atingiram 2,3 milhões de pessoas, desalojaram 600 mil e levaram 27 municípios a decretar estado de emergência. O saldo foi devastador: 183 mortos, 806 feridos e 28 desaparecidos. A tragédia também gerou uma crise sanitária, até agosto, a Secretaria de Saúde havia registrado 788 casos de leptospirose e 10 surtos de doença diarreica aguda. O relatório ainda aponta que grupos indígenas foram particularmente afetados — 16.691 pessoas pertencentes a esses povos sofreram impactos diretos.
“As enchentes no Rio Grande do Sul atingiram sobretudo os grupos vulneráveis. Ataques a comunidades indígenas e quilombolas continuaram frequentes, impulsionados por políticas inadequadas de demarcação de terras”, destaca o relatório da Anistia.
A CIDH também reforça que comunidades indígenas, quilombolas, famílias chefiadas por mulheres e migrantes enfrentaram obstáculos significativos para acessar ajuda durante e após a emergência. O relatório aponta ainda falhas nos sistemas de contenção, alertas ineficientes e condições precárias nos abrigos, com relatos de violência e agravamento de transtornos de saúde mental.
O estudo inédito, que será apresentado nesta semana em Brasília, cobra a criação de um sistema permanente de monitoramento das ações de reconstrução. Em visita ao país, o relator especial Javier Palummo Lantes alertará autoridades em Porto Alegre e na capital federal sobre a urgência de integrar a crise climática aos planos municipais, melhorar os sistemas de drenagem e restaurar ecossistemas degradados. Também pedirá que os direitos humanos de categorias historicamente invisibilizadas, como pescadores artesanais, ribeirinhos e catadores, sejam prioritários.
A lentidão na entrega de moradias permanentes é uma das principais críticas. Um ano após o desastre, cerca de 400 pessoas ainda vivem em abrigos provisórios. O governo federal prometeu 22 mil novas unidades habitacionais, mas até janeiro apenas 448 haviam sido iniciadas. O estado, por sua vez, construiu 332 moradias temporárias — feitas com contêineres e consideradas inadequadas pela Anistia devido a suas condições insalubres, falta de espaço e isolamento urbano.
“Esse cenário exige uma política habitacional emergencial e de longo prazo, voltada não apenas para a realocação da população atingida, mas também para a implementação de um planejamento urbano que reduza a vulnerabilidade a desastres climáticos”, afirma a Comissão.
Apesar de o governo federal ter anunciado R$ 111,6 bilhões em investimentos para o Rio Grande do Sul e o governo estadual declarar a alocação de mais de R$ 8 bilhões em diferentes áreas, apenas uma parte desses recursos foi efetivamente aplicada. No caso do Plano Rio Grande do Sul, por exemplo, apenas R$ 1,7 bilhão foi de fato executado, com foco em obras de infraestrutura, como estradas, hidrovias e medidas de segurança. Ainda assim, um reflexo positivo desse movimento de retomada pode ser observado no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do estado, que avançou 24% em 2024 — desempenho bem acima da média nacional, de 3,4%.
O cenário torna-se ainda mais preocupante diante de um estudo recente da Agência Nacional de Águas (ANA) que indica que enchentes extremas como a de 2024 podem se tornar até cinco vezes mais frequentes na região sul do Brasil. O volume dos rios pode aumentar em até 20%, elevando o nível da água em Porto Alegre entre 50 centímetros e um metro. De acordo com o estudo, “as enchentes do ano passado também evidenciaram vulnerabilidades existentes no planejamento urbano, na gestão de recursos hídricos e na comunicação de riscos ao público”.
A tragédia climática que deixou quase todo o Rio Grande do Sul submerso atingiu 478 dos 497 municípios do estado. Cidades como Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul e Roca Sales sofreram com alagamentos severos, deslizamentos de terra e a destruição de bairros inteiros. Em Canoas, mais de 180 mil pessoas foram desalojadas e os prejuízos somaram R$ 8,4 bilhões, especialmente no setor habitacional.
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