Primeiro vice-presidente na história dos Estados Unidos, e mais tarde o segundo no rol dos presidentes, John Adams (1735-1826) demoliu o próprio posto de número 2 ao dizer: “É o ofício mais insignificante que a imaginação do homem já concebeu”. Não foi o único a reduzir o tamanho da cadeira. Tempos depois, Theodore Roosevelt (1858-1919), outro que experimentou os dissabores do cargo, afirmou que “preferia ser qualquer coisa, um professor de história, a ser vice-presidente”. Em sua temporada na Number One Observatory Circle, a residência oficial dos vices americanos, em Washington, o atual ocupante da função, JD Vance, já demonstrou querer espantar a irrelevância e não ficar à sombra de Donald Trump, que tem nas mãos o leme da Casa Branca e nenhum pendor para fazer qualquer um à sua volta brilhar.
Em relação a seus antecessores, o ex-fuzileiro naval que trilhou bem-sucedida carreira no Vale do Silício, a meca californiana da tecnologia, acabou de ganhar uma vantagem inédita: tornou-se também tesoureiro do Partido Republicano, controlando agora o cofre da sigla e assumindo papel central na escolha dos candidatos nas próximas eleições legislativas, que se prometem acirradas em meio a um polarizado cenário político. As ambições de Vance não são poucas. A aliados já falou que seu sonho é a Presidência em 2028, para preencher a vaga republicana que Trump bem que queria que fosse dele, em flagrante desafio à lei, mas, a confiar na solidez das instituições, não será.
Na segunda-feira 5, o próprio Trump falou, em entrevista, que considera seu vice um possível sucessor, embora seja “muito cedo para dizer”. Aos 40 anos e novato na política, arena em que entrou apenas em 2022, como senador de Ohio, Vance tem a seu favor o fato de ser hoje a única voz, além da do chefe, realmente audível do trumpismo — um movimento sem expoentes. No xadrez do poder, vem atuando como a figura que dispara aberrações sem filtros, poupando Trump de verbalizar algumas delas. “Ele é leal ao presidente. Sabe que não deve ofuscá-lo e age como um cão que não só protege, mas também ataca”, avalia o especialista Matt Dallek, da Universidade George Washington.
Muitos episódios guindaram o nome de Vance do anonimato a certa fama (nem tão boa assim), sobretudo por atropelar pilares já bem estabelecidos da geopolítica moderna. Coube a ele, por exemplo, a missão de afirmar em frente a uma plateia de olhos arregalados que Washington não considerava mais a Rússia de Vladimir Putin a maior ameaça à segurança na Europa e ainda tratou de inverter a equação: o principal inimigo dos europeus seriam, segundo Vance, eles próprios, “ao atacarem a liberdade de expressão” — uma referência à regulamentação das redes, que ele repudia, tal qual Trump. Depois, em um episódio que muitos estudiosos de peso consideraram o mais embaraçoso na história da diplomacia americana, o vice foi peça vital na série de humilhações às quais o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi submetido em pleno Salão Oval, quando o que estava à mesa era o apoio dos Estados Unidos na guerra contra os russos. “Diga algumas palavras de apreço aos Estados Unidos da América e ao presidente, que está tentando salvar seu país”, provocou Vance.
Com um carimbo de advogado pela Universidade Yale, que gosta de exibir em sua tentativa de se revestir de verniz, casado com uma filha de imigrantes indianos e pai de três filhinhos, ele é autor de um livro adaptado para o cinema, Era uma Vez um Sonho, em que expõe a dependência química da mãe num lar em que faltava dinheiro e fala de quando serviu nas Forças Armadas durante a invasão americana no Iraque. Mais tarde, fez fortuna no Vale do Silício, sem, como ele diz, perder contato com a “América profunda” — sua plataforma maior. No passado, Vance não gostava de Trump e não escondia isso (comparou-o certa vez a Adolf Hitler), mas foi só ele ascender para trocar de lado. No último domingo de Páscoa, o vice que se converteu ao catolicismo esteve com o papa Francisco um dia antes de o pontífice falecer. Os dois já haviam travado um embate em torno da questão da imigração no qual, em uma malsucedida tentativa de defender o cerco a estrangeiros em seu país, Vance evocou até Santo Agostinho. Francisco não demorou a tratar do assunto com seu rebanho, rebatendo a ideia com veemência. Por ora, o vice, assim como o chefe, patina na aprovação dos americanos. Mas Vance sabe que o jogo, para o bem ou para mal, está só começando.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2025, edição nº 2943
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